NAIROBI, Quênia – O primeiro-ministro do Sudão, deposto por um golpe militar, mas reintegrado há mais de um mês, renunciou ao cargo no domingo, na última turbulência para interromper a instável transição da ditadura para a democracia.
A decisão do primeiro-ministro Abdalla Hamdok veio no momento em que protestos generalizados atingiram a nação do nordeste africano.
Os manifestantes denunciaram não apenas o golpe que destituiu Hamdok em outubro, mas também o acordo que o levou de volta ao poder em novembro. Grupos políticos de oposição e outras forças políticas importantes rejeitaram-no como uma concessão inaceitável aos militares, que controlaram o Sudão durante a maior parte de sua história, desde que se tornou um estado independente há mais de seis décadas.
Em um discurso televisionado na noite de domingo, Hamdok disse que as repetidas tentativas de mediação falharam nos últimos dias e que o país precisava se engajar em um novo diálogo para traçar um caminho em direção a um estado civil democrático.
Seu discurso veio poucas horas depois que as forças de segurança mataram três manifestantes, de acordo com o Comitê Central de Médicos do Sudão, pró-democracia, elevando para 58 o número total de pessoas mortas nos dois meses desde o golpe.
Por semanas, em meio a especulações de que o primeiro-ministro poderia deixar o cargo, líderes locais e internacionais pressionaram Hamdok a agüentar firme.
Mas no final não funcionou.
“Tentei o máximo que pude para evitar que nosso país caísse no desastre”, disse Hamdok ao anunciar sua renúncia. “Mas apesar dos meus esforços para alcançar o consenso desejado e necessário para dar aos cidadãos segurança, paz, justiça e para parar o derramamento de sangue, isso não aconteceu.”
Entenda o Golpe do Sudão
Em 25 de outubro, um golpe liderado pelos militares descarrilou a transição do Sudão para o regime civil e mergulhou o país de volta no medo e na incerteza.
Meses de turbulência ameaçaram abalar as esperanças de estabelecer uma democracia no Sudão, que nasceram após a queda de 2019 do ditador de longa data do país, Omar Hassan al-Bashir. A instabilidade política foi agravada por outros desafios, incluindo terríveis problemas econômicos e nova violência na agitada região de Darfur, no oeste do Sudão.
Hamdok foi destituído do cargo em um golpe em 25 de outubro e voltou ao cargo no final de novembro, após quatro semanas de prisão domiciliar. Ele foi reintegrado apenas depois de assinar um novo acordo de divisão de poder com os líderes militares que o haviam deposto.
A ocasião foi marcada por uma cerimônia televisionada no palácio presidencial, com o primeiro-ministro aparecendo ao lado do tenente-general Abdel Fattah al-Burhan, o chefe do exército que o destituiu e, a certa altura, o deteve em sua própria residência.
Os dois homens assinaram um acordo de 14 pontos que consideraram um importante passo em frente. Incluía o compromisso de libertar todos os presos políticos e preservar o caminho da nação em direção à democracia.
A esperança era que o retorno de Hamdok ao cargo pudesse encerrar os protestos que se seguiram ao golpe e as represálias brutais das forças de segurança. Mas não funcionou.
A maior organização política do Sudão, o partido Umma, rejeitou o acordo. O mesmo aconteceu com as Forças de Liberdade e Mudança, uma coalizão civil que dividiu o poder com os militares até o golpe.
O acordo também não agradou aos cidadãos comuns. Manifestantes se reuniram em frente ao palácio presidencial em Cartum e em outras partes do país – inclusive no domingo, dia em que Hamdok renunciou. Eles pediram que os líderes do golpe sejam processados.
Hamdok, em particular, foi acusado de fornecer uma folha de figueira que permitiu aos militares continuar a dominar a esfera política.
Os oficiais de segurança responderam às manifestações com força pesada, lançando gás lacrimogêneo e disparando borracha e balas reais, de acordo com ativistas e manifestantes. Centenas de pessoas ficaram feridas em todo o país.
O escritório de direitos humanos das Nações Unidas também afirma que 13 mulheres e meninas acusaram as forças de segurança de violência sexual.
“Instamos a uma investigação rápida, independente e completa sobre as alegações de estupro e assédio sexual, bem como as alegações de morte e ferimentos de manifestantes como resultado do uso desnecessário ou desproporcional da força, em particular o uso de munição real”, Liz Throssell, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, disse em um comunicado Semana Anterior.
Fora do palco político, outros eventos levaram o Sudão a um ponto de ruptura. Nas últimas semanas, dezenas de pessoas foram mortas e suas aldeias queimadas na violência entre pastores e fazendeiros no estado de Darfur Ocidental, disse a Organização das Nações Unidas.
E a economia do Sudão está oscilando, com choques e fechamentos relacionados à pandemia, contribuindo para o aumento do desemprego e o aumento dos preços dos alimentos, de acordo com o Banco Mundial.
Essa é uma área que muitos sudaneses esperavam que Hamdok, um economista educado na Grã-Bretanha que já trabalhou para as Nações Unidas, consertasse, quando foi nomeado primeiro-ministro em 2019, após os protestos tumultuosos que levaram à demissão de al- Bashir.
Sob um acordo anterior de divisão de poder entre civis e militares alcançado então, o Sr. Hamdok foi nomeado para liderar o Sudão por um período de transição de três anos, com o objetivo de realizar eleições livres.
Seu governo foi bem-sucedido de várias maneiras, ampliando as liberdades pessoais, proibindo a mutilação genital feminina, assinando um acordo com grupos rebeldes e ajudando a remover o Sudão de uma lista dos Estados Unidos como patrocinadores do terrorismo.
“Tive a honra de servir meus compatriotas por mais de dois anos”, disse Hamdok no domingo, “e durante essa jornada às vezes me saí bem e às vezes fracassei”.
A coalizão civil-militar estava preocupada, em parte porque os generais temiam que seus privilégios, por muito tempo zelosamente guardados, pudessem evaporar.
Para completar a transição do país para a democracia, Hamdok disse no domingo, é fundamental abrir um diálogo que traga todos os sudaneses à mesa.
“Nosso país está passando por um ponto de inflexão perigoso que pode ameaçar toda a sua sobrevivência se não for remediado logo”, disse ele.
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