CAIRO – Nos últimos dois meses, o presidente Kais Saied da Tunísia obteve amplo apoio popular a picos de poder cada vez mais elevados, culminando em um anúncio recente de que ele essencialmente governaria o país por decreto. Mas agora ele começou a enfrentar uma oposição crescente, aumentando a incerteza sobre a crise política mais séria da Tunísia em uma década, enquanto sua economia caminha para a ruína.
As repreensões vieram de adversários ferrenhos e ex-aliados, de partidos políticos e da mídia, e até mesmo de alguns dos mesmos apoiadores que aplaudiram nas ruas quando Saied congelou o Parlamento, demitiu o primeiro-ministro e tomou o poder em 25 de julho. No domingo, pelo menos 2.000 manifestantes na capital, Tunis, pediram que Saied encerrasse o que chamaram de seu “golpe”, a primeira grande manifestação contra suas ações em dois meses.
Um comunicado conjunto de quatro partidos políticos, incluindo um que era anteriormente próximo ao presidente, disse que Saied estava caminhando para a ditadura e pediu-lhe que acabasse com suas “medidas excepcionais”, que ele havia prometido serem temporárias.
“Consideramos que o presidente perdeu sua legitimidade ao violar a Constituição”, disse o poderoso sindicato geral dos trabalhadores do país, UGTT, em um comunicado na sexta-feira, alertando Saied contra concentrar muito poder em suas mãos sem diálogo.
Saied lançou a democracia do país do Norte da África, a única a emergir dos protestos da Primavera Árabe que começaram na Tunísia e varreram a região há uma década, em uma dúvida cada vez mais profunda.
Ele disse em julho que suas ações eram respostas provisórias às emergências econômicas e de saúde da Tunísia. Mas o presidente apenas apertou seu controle sobre o poder desde então, ignorando as pressões internacionais e domésticas para restaurar o Parlamento.
Na quarta-feira, o gabinete de Saied anunciou que ele estabeleceria um sistema sob o qual governaria o país essencialmente por decreto, contornando a Constituição. Ele disse que assumirá o poder de emitir “textos legislativos” por decreto e selecionar o gabinete, embora a Constituição torne o Parlamento responsável pela formulação de leis e autorize o primeiro-ministro a nomear um gabinete.
Quanto à Constituição, que os tunisianos adotaram em 2014 após anos de árduas consultas e negociações, o anúncio dizia simplesmente que quaisquer disposições constitucionais que contrariam os novos poderes de Saied não estavam mais em vigor. Isso deixou em vigor apenas o preâmbulo do documento e os dois primeiros capítulos, que tratam dos princípios orientadores e dos direitos e liberdades da Tunísia.
O gabinete de Saied disse que ele se encarregaria de redigir revisões políticas e emendas constitucionais com a ajuda de um comitê que nomearia.
Esse item em particular chamou a atenção da UGTT, o sindicato trabalhista, que fazia parte de um quarteto de grupos que recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 2015 por liderar uma discussão nacional que ajudou a democracia incipiente da Tunísia a sobreviver a uma crise política em 2013.
“A alteração da Constituição e da lei eleitoral é um assunto que diz respeito a todos os componentes da sociedade”, leu o comunicado do sindicato na sexta-feira. Convidou Saied a se envolver em negociações, em vez de monopolizar o poder de mudar a Constituição.
“Não há solução para a crise atual que não seja a consulta, parceria e diálogo com base nos princípios nacionais, na soberania da Tunísia e no serviço”, acrescentou o sindicato.
O anúncio feito na quarta-feira pelo gabinete do presidente também disse que os legisladores perderiam seus salários e benefícios, além de sua imunidade à acusação, que Saied já havia retirado. As autoridades tunisinas prenderam cinco membros do Parlamento nos últimos dois meses, incluindo críticos do presidente, embora um deles, Yassine Ayari, tenha sido libertado na semana passada.
Outros alvos incluem empresários e juízes, alguns dos quais foram submetidos a prisão domiciliar, proibições de viagens e congelamento de ativos.
No início, muitos tunisianos ficaram radiantes ao ouvir falar das medidas excepcionais de Saied. Colocando suas esperanças em salvar a economia em declínio da Tunísia, revisando a política caótica do país e combatendo a corrupção generalizada em um presidente que consideravam incorruptível, eles rejeitaram as advertências de oponentes políticos e críticos de Saied de que suas ações cheiravam a ditadura.
Mas Saied falhou em traçar um roteiro há muito aguardado para mudar o país e alertou ao recusar-se a se envolver com grupos civis ou outros políticos para determinar um caminho a seguir.
Depois de dois meses sem resultados, o descontentamento – ou pelo menos a impaciência – com as ações de Saied começou a apodrecer. Um pequeno grupo de manifestantes se manifestou contra ele no início deste mês; milhares mais se reuniram no domingo em Tunis.
“Imperador Kais, o primeiro de sua linha”, Sarra Grira, jornalista tunisiano, escreveu no Facebook logo após o anúncio de que Saied assumirá poderes maiores.
Mas o verdadeiro teste para a popularidade de Saied será se ele conseguirá enfrentar a miséria econômica que lançou a Tunísia na turbulência em primeiro lugar. Lutando contra o alto desemprego, o declínio dos padrões de vida e a pobreza generalizada que leva milhares de tunisianos a correr o risco de migrar pelo Mediterrâneo para a Europa todos os anos, o país não tem perspectivas claras de melhoria.
Saied interrompeu as negociações com o Fundo Monetário Internacional sobre um resgate sem explicar seus planos econômicos, embora tenha ganhado popularidade entre alguns tunisianos com propostas para forçar empresários ricos acusados de corrupção a financiar projetos de desenvolvimento em regiões mais pobres.
“O muro contra o qual Kais está se arremessando e pode se espatifar é a economia”, disse Monica Marks, professora de política do Oriente Médio na Universidade de Nova York em Abu Dhabi que estuda a Tunísia. “As expectativas são muito altas e ele tem tudo a ver com isso”, acrescentou ela.
“Inevitavelmente, haverá um grande abismo entre as expectativas populistas, que estão mais altas do que nunca agora, e a realidade do que Kais pode realmente oferecer.”
Massinissa Benlakehal contribuiu com reportagem de Tunis.
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