RIO DE JANEIRO – As reviravoltas de um escândalo de propina de vacina contra o coronavírus que sacudiu a capital do Brasil têm sido dignas de um reality show.
O palco principal foi uma sala de audiência do Congresso, onde dezenas de testemunhas lançaram luz sobre a resposta caótica do governo à pandemia, que matou mais de 520 mil no país.
Houve muitos gritos, uma um pouco de choro e uma boa quantidade de pérolas quando a audácia e o escopo de um esquema de funcionários do ministério da saúde para solicitar suborno de traficantes de vacinas entrou em foco. A indignação atraiu dezenas de milhares de brasileiros para protestar em várias cidades no sábado, a terceira grande onda de manifestações nas últimas semanas.
Muito sobre o escândalo, que o Ministério Público Federal está investigando, permanece obscuro e controverso. Mas a investigação mais ampla provavelmente representará uma grande ameaça à tentativa de reeleição do presidente Jair Bolsonaro no ano que vem – e talvez até mesmo à sua capacidade de cumprir o restante de seu mandato.
A pedido de um juiz da Suprema Corte, o gabinete do procurador-geral abriu na sexta-feira uma investigação sobre o papel de Bolsonaro no esquema de corrupção da vacina. O presidente está sob escrutínio em um acordo para garantir 20 milhões de doses de uma vacina que ainda não havia completado os testes clínicos ou sido aprovada pelos reguladores. Ele é acusado de ignorar um aviso de que houve algumas irregularidades no negócio.
Além disso, um grupo de 100 legisladores de uma ampla gama de partidos apresentou projetos de artigos de impeachment no início da semana, descrevendo dezenas de supostos crimes. Eles vão desde as ações do presidente para enfraquecer as instituições democráticas até relatos de negligência e prevaricação que impediram a campanha da vacina Covid-19 no Brasil.
Membros da oposição no Congresso dizem que o escândalo da vacina tem o potencial de galvanizar manifestações de rua do tipo que levou à destituição da presidente Dilma Rousseff em 2016.
“Todo crime cometido pelo presidente é grave, mas este é ainda mais grave porque envolve vidas”, disse Joice Hasselmann, parlamentar paulista que estava entre os mais ferozes defensores de Bolsonaro até desentender-se em 2019 . “O Brasil não agüenta mais um ano com o Bolsonaro.”
Bolsonaro não contestou que altos funcionários de seu governo possam ter agido ilegalmente nas negociações de vacinas. Mas ele chamou esforços para atribuir o delito a ele injusto.
“Não tenho como saber o que está acontecendo nos ministérios”, disse ele a apoiadores na segunda-feira. “Não fizemos nada de errado.”
No sábado, a fúria com as últimas revelações foi palpável quando dezenas de milhares foram às ruas em uma terceira rodada de recentes manifestações contra o governo Bolsonaro.
No centro do Rio de Janeiro, milhares marcharam ao som de tambores e gritaram “fora com o Bolsonaro!” enquanto ativistas faziam discursos inflamados de caminhões de som. Um homem segurava uma grande placa de papelão que dizia: “As pessoas só saem para as ruas no meio de uma pandemia quando o governo é mais perigoso que o vírus”.
Amanda Machado, 45, uma veterinária, usava uma fantasia de ceifador e segurava uma réplica de uma cabeça decepada ensanguentada com o rosto de Bolsonaro estampado nela.
“Isso representa meu desejo”, disse ela, segurando o adereço ensanguentado.
A Sra. Machado culpou Bolsonaro pela morte de colegas, amigos e parentes que sucumbiram ao vírus enquanto o presidente minimizava repetidamente o risco que ele representava, semeia dúvidas sobre vacinas e promove grandes reuniões.
“Estar aqui fora representa um risco”, disse ela. “Mas não realizamos nada ficando em casa.”
O escândalo da vacina começou a fermentar em junho, quando membros de uma comissão do Congresso estabelecida em abril começaram a suspeitar dos termos de um acordo de US $ 316 milhões que o governo fechou para comprar 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin Covid-19.
A compra foi incomum porque o Brasil durante meses havia ignorado as repetidas ofertas da Pfizer, que oferecia milhões de doses antecipadas de sua vacina. A aprovação apressada do acordo com a Covaxin também foi confusa porque a vacina ainda não havia concluído os testes clínicos e não havia sido autorizada pelo órgão regulador de saúde do Brasil. Seu preço era exponencialmente mais alto do que o preço que o fabricante havia anunciado no início deste ano. E a venda foi intermediada por um intermediário.
No final de junho, um legislador aliado de Bolsonaro, Luis Claudio Miranda, usou um colete à prova de balas para oferecer testemunho explosivo ao Congresso. Ele disse aos legisladores que ele e seu irmão, Luis Ricardo Miranda, funcionário do ministério da saúde, se reuniram em particular com Bolsonaro em março para alertar o presidente sobre irregularidades no negócio da Covaxin. Legisladores chefiando um comitê especial da Covid-19 disseram que não há evidências de que Bolsonaro tenha pedido aos policiais que investigassem as alegações.
Dias depois, Luiz Paulo Dominguetti, executivo de uma empresa de suprimentos médicos, disse ao jornal Folha de S. Paulo que o chefe de logística do Ministério da Saúde do país, Roberto Ferreira Dias, havia procurado negociar um acordo para comprar vacinas AstraZeneca que incluía um $ 1 por recompensa de dose.
Em seguida, Dominguetti surpreendeu os legisladores ao afirmar em uma audiência no Congresso que Miranda, o deputado que denunciou o acordo com a Covaxin, desempenhou um papel na negociação da compra duvidosa da AstraZeneca. O Sr. Miranda negou qualquer irregularidade.
À medida que aumentava a raiva pelas alegações, Bolsonaro demitiu Dias, o funcionário do ministério da saúde, que negou ter procurado suborno. O ministério agora está tentando sair do negócio com a Covaxin.
Humberto Costa, um senador que faz parte do comitê especial da Covid-19, disse que o escândalo minou a imagem de Bolsonaro como um político fundamentalmente honesto, o que foi crucial para a vitória do líder da extrema direita em 2018.
“A investigação do Congresso minou fortemente a imagem anticorrupção do governo e do presidente”, disse Costa.
Como o custo humano e econômico da pandemia devastou famílias brasileiras nos últimos 15 meses, a base de Bolsonaro encolheu vertiginosamente, mostram as pesquisas. Pesquisa divulgada pela empresa de pesquisa de opinião pública Ipec No final do mês passado, sugeriu que Bolsonaro seria derrotado por seu principal rival político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se a votação fosse realizada hoje.
Guilherme Casarões, analista político e professor da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, disse que o aprofundamento do isolamento político do presidente o tornou mais radical do que conciliador.
“Isso pode deixá-lo em uma situação mais virulenta”, que pode levar a um colapso democrático, disse Casarões. “Ele já deu indicações claras de que não respeita as instituições, do Supremo Tribunal Federal ao Congresso.”
Danielle Oliveira, advogada do Rio de Janeiro, disse que se absteve de sair às ruas durante a pandemia por medo de pegar o vírus, mas decidiu se juntar à multidão no sábado após receber a primeira dose de uma vacina.
“O impeachment neste momento não parece provável”, disse Oliveira, 47, que usava uma máscara dupla e um protetor facial para a manifestação. “Mas se ficarmos nas ruas isso pode mudar.”
À medida que mais legisladores se aproximam para apoiar o impeachment, o presidente começa a alertar sobre fraude nas eleições presidenciais do próximo ano, programadas para ocorrer em outubro de 2022. Bolsonaro sugeriu, sem apresentar evidências, que as urnas eletrônicas do Brasil podem ser facilmente manipulado, e que uma perda eleitoral no próximo ano seria o resultado de fraude.
Bolsonaro atacou a investigação do Congresso, chamando os legisladores de “bandidos” e dizendo que falar sobre impeachment é um absurdo.
“Não adianta nos provocar, nos inventar, nos difamar, nos atacar 24 horas por dia, porque eles não vão conseguir nada”, ele disse na semana passada. “Só uma coisa vai me tirar de Brasília: Deus.”
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